Igreja de S. Domingos - S. Gonçalo - Amarante
Fotografia de Anabela Matias de Magalhães
É com imensa alegria que hoje publico a Aula do Professor Miguel Moreira subordinada ao tema "O Barroco". Sem mais.
O BARROCO
Toda a expressão artística é reflexo das
dinâmicas sociais e um produto mental e cultural da época histórica em que surge.
O Barroco não é exceção. Iniciada nos finais do século XVI e desenvolvida ao
longo dos séculos XVII e XVIII, a arte barroca surge num ambiente dominado pela
consolidação das grandes monarquias absolutas, pelo movimento da contrarreforma
da Igreja Católica e num mundo abalado por todo o tipo de guerras, epidemias e
convulsões sociais. Neste contexto, o barroco é aproveitado tanto pelos
monarcas absolutistas para valorizarem a sua imagem e ostentarem o seu poder,
mandando construir imponentes e luxuosas cortes, como pela Igreja Católica
empenhada em seduzir os crentes que, sobretudo nos países nórdicos, aderiam em
massa ao protestantismo. A arte é, desta forma, instrumentalizada e manipulada,
por papas e reis, com o objetivo de persuadir, deslumbrar e seduzir.
Nascido em Itália, nos finais do século
XVI, a partir de formas maneiristas, o Barroco rapidamente se espalhou a todos
os países da Europa do sul, atingindo, também, as colónias espanholas e
portuguesas da América Latina e do sul da Ásia.
Roma, sede do Papado, representava,
também, o triunfo do catolicismo face à Reforma Protestante. Com esse objetivo,
o Papa Sisto V (1585-1590) criou uma cidade-espetáculo na qual a linguagem
barroca respondia plenamente aos desígnios do poder papal e das orientações
tridentinas. Com intervenções de arquitetos como Bernini e Barromini, as novas
construções, distantes da ordem, do equilíbrio e da regularidade da composição
renascentista, experimentavam jogos de massas e de espaços, formas onduladas e
dinâmicas e uma decoração exuberante e cenográfica, com o único propósito de
deslumbrar o observador e despertar-lhe fortes impactos emocionais.
Apesar das diferentes interpretações que
se verificaram nos diferentes países e regiões, determinadas por diferentes
contextos políticos, religiosos e culturais, este estilo apresentou algumas
características comuns. Assim, os arquitetos barrocos, entendendo o edifício de
forma integrada, como se fosse uma grande escultura, única e indivisível, davam
preferência às linhas curvas, em formas côncavas ou convexas, explorando os
efeitos contrastantes de luz e de sombra, na procura do movimento e do infinito.
Os portais, normalmente divididos por andares, com as suas colunas torsas ou
pseudo-salomónicas, os contrastes entre cheios e vazios, os entablamentos
interrompidos e irregulares, as imagens inseridas nos seus nichos, os frontões
de linhas curvas e uma decoração exuberante, eram pensados e construídos no
quadro de uma vivência e de uma sensibilidade vocacionadas para a teatralidade,
capazes de atrair pelo olhar, de persuadir pela beleza, de emocionar e de
envolver os fiéis.
Mas foi nos interiores que o barroco mais
impressionou. O Barroco, numa espécie de “horror pelo vazio”, cobriu os
interiores de frescos, de telas, de mármores policromados, de esculturas, de
retábulos e de talha dourada, contribuindo desta forma para a profusão da cor e
para o prazer dos sentidos.
Ora, foi precisamente a talha dourada a
mais genuína e característica arte do Barroco em Portugal. Muito prolixa e
exuberante, a talha revestiu altares, paredes, tetos, órgãos, púlpitos, cadeirais,
balaustradas, arcos, frisos, cornijas, janelas e sanefas. A talha “forrou de
ouro” as igrejas. E, “Se a Igreja é a
imagem do Céu sobre a Terra, como não ornamenta-la com o que há de mais
precioso?” pergunta René Huyghe, em “Sentido
e Destino da Arte”.
A talha dourada é uma técnica escultórica
em que a madeira é esculpida e, posteriormente, revestida por uma fina película
de ouro. A sua execução implicava a participação de vários artistas: o
arquiteto, que fazia o desenho, o entalhador, que esculpia a madeira, o
ensamblador, que preparava a madeira para receber o ouro e, por fim, o
dourador, que aplicava o ouro.
Depois de concluídas, as obras de talha
dourada, sobretudo os retábulos, codificam uma linguagem simbólica e alegórica
que ultrapassa a sua função meramente decorativa ou cenográfica e assumem um
papel ativo na interação com o observador. Nesta pedagogia formal e
cenográfica, o brilho e a cor do ouro desempenhavam um papel determinante, não
só pelo seu impacto visual, mas especialmente pelo seu simbolismo, pois
imprimiam essência divina ao espaço, numa espécie de prefiguração da esfera
celestial. Um apelo mais aos meios de perceção sensorial, imaginativa e afetiva
dos fiéis, do que às suas faculdades intelectuais, procurando, assim, através
da eloquência das formas e das cores, envolver e persuadir sensorial e
emocionalmente os fiéis, sobretudo as massas populares.
Na evolução da talha portuguesa, podemos
distinguir três fases:
O Estilo Nacional, com retábulos
compostos de uma tribuna com o seu trono piramidal, ladeado por colunas
pseudo-salomónicas de fuste espiralado que sustentam arcos concêntricos. Como
motivos ornamentais, quase de vulto perfeito, apresentam-se folhas de videira e
cachos de uvas (alusão à Eucaristia), meninos e querubins, pequenos pássaros (fénix,
símbolo da ressurreição) e folhas de acanto. Dos lados, a composição é rematada
por pilastras, mísulas e outros elementos que enfatizam a estrutura retabular.
O Estilo Joanino (a talha atinge o seu
apogeu na época de D. João V), com retábulos mais elevados, baldaquinos que
substituem os arcos concêntricos e colunas salomónicas. O trono mantém o lugar
cimeiro, agora tratado com mais aparato. A decoração inclui novos elementos: grinaldas,
palmas, conchas, medalhões, festões, volutas com cabeças de querubins e figuras
angélicas ou alegóricas. Para o esquema teatral muito contribuem as imagens
inseridas nos seus nichos, os atlantes na base dos retábulos, cortinados nos
remates puxados por anjos, sanefas que coroam o arco cruzeiro.
O Estilo Rocaille ou Rococó, termo de
origem francesa que designava um tipo de ornamentação inspirada nas fontes e
grutas artificiais dos jardins, baseada na imitação de rochas, conchas, flores
e outros elementos naturais. Na talha, a sua linguagem decorativa é feita por
formas flamejantes, folhas estilizadas, curvas e contracurvas, enlaçamentos de
volutas, ornatos complicados e de grande requinte, inseridos num fundo com
cores esbatidas a lembrar influências orientais.
Mas o Barroco não foi apenas um estilo
arquitetónico. Ele influenciou transversalmente todas as formas de expressão
artística e cultural da sua época: a escultura, a pintura, o mobiliário, a
literatura, a música, a dança…
A escultura, associada à arquitetura ou à
pintura, colocada isoladamente em praças e jardins, invadiu tudo,
encontrando-se por todo o lado. Caracteriza-se pelo rigor da execução técnica,
pela exploração das capacidades expressivas das personagens ou cenas, conseguida
pela acentuação dos gestos e das expressões faciais e corporais, pela
preferência de representações em movimento, pela utilização de panejamentos
volumosos, agitados e decompostos, e pelo sentido cénico das obras.
Tal como a arquitetura e a escultura,
também a pintura teve como objetivo o deslumbramento, a surpresa, a encenação e
a luz, integrando um “espetáculo” que se queria total. A pintura barroca jogou
com as formas fluidas e ondulantes, aplicou um animado cromatismo e acentuou os
contrastes de luz e sombra, aumentando a sensação de realismo. Acentuou, ainda,
a sensação de profundidade, sobretudo com a técnica “trompe l’oeil”, aplicada em paredes e tetos, o que constitui uma
das mais originais contribuições do Barroco.
A literatura barroca dedicou um profundo
cuidado à forma e ao virtuosismo linguístico no intuito de maravilhar e
convencer o leitor, com o uso constante de figuras de linguagem e outros
artifícios retóricos, como a metáfora, a elipse, a antítese, o paradoxo e a
hipérbole, com grande atenção ao detalhe e à ornamentação como partes
essenciais do discurso e como formas de demonstrar erudição e bom gosto.
Expressão, por excelência, dos sentidos e
das emoções intensas, foi na música, no teatro e na ópera que a cultura barroca
alcançou todo o seu esplendor. O gosto pelo espetáculo, pela cenografia, pela
sumptuosidade dos figurantes, pela associação da música com a dança, com o
canto e com a representação dramática deram origem a um género musical
tipicamente novo – a ópera.
Concluindo, o Barroco foi, por
excelência, uma arte de imagens, uma arte de cenografia, no qual todas as
expressões artísticas concorrem para um único objetivo: produzir espetáculo.
Miguel Moreira, Abril de 2013
Nota - Agradecida, Miguel Moreira, por aceitares o meu desafio. O círculo está agora fechado.
Anabela Magalhães
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